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    Anjos ciganos.

              As crianças na cultura cigana.

Por Cigana Carmem.

 

Minha amada leitora,

Mais uma segunda feira chegou, e está no meio de dois feriados, mas mesmo assim eu estou aqui, porque meu compromisso com você é o que tem de mais importante para mim. Até porque eu estou empolgadíssima porque, como falei, estamos numa série de matérias sobre a cultura cigana. A cultura do meu povo, que é encantadora. A palavra certa é: mágica. Porém, apesar da marginalização e do preconceito em relação aos ciganos, ainda assim a nossa cultura é fascinante.  Além de sobrevivente, é uma cultura resistente e rica. Sua essência e natureza continuam vivas. E o que mais me dá orgulho na cultura cigana no que se refere à educação das crianças é a liberdade. A educação das crianças ciganas é muito livre. Mas, isso não quer dizer que não seja séria e comprometida. Lamentavelmente, a visão do inconsciente coletivo ocidental a respeito de liberdade é distorcida, porque as pessoas se baseiam na premissa de que pessoas “livres” não são sérias. Um equívoco burro e raso, uma vez que essa compreensão está imbuída de julgamentos e preconceitos infundados e ilusórios.

Porque a criação das crianças na cultura cigana é mágica? Porque elas crescem em meio à muita cultura, que aliás é muito incentivada, inclusive como profissão, pois desde cedo as crianças são educadas para a vida adulta e começam desde muito jovens a contribuir financeiramente com as despesas familiares. Logo, ao mesmo tempo em que elas são envoltas por lazer e muitas brincadeiras e socialização, também aprendem a se tornarem responsáveis desde crianças. O problema, para a sociedade moralista e religiosa, na verdade, é o fato de que a cultura cigana não segue os preceitos católicos. E para os católicos ou evangélicos, quem não segue seus preceitos não presta. Isso se chama preconceito e julgamentos. E tudo isso vai contra a palavra de Deus.

Outra coisa fundamental na educação das crianças ciganas é o respeito para com os mais velhos. Isso é fundamental para nós e deve ser seguido à risca. Contudo, quero me ater à atmosfera livre e criativa dessa educação. A formação das crianças ciganas se dá de forma oral, ou seja, não formal, logo, não “normal” para a cultura ocidental. Tal maneira de ser, é o ponto central em torno do qual se alastram as informações vulgares a nosso respeito. Mas, o que eu faço questão de enfatizar é que é justamente essa liberdade que torna os adultos seres conscientes e donos de si. Isso mesmo. Contudo, é exatamente nesse pormenor que há um grande problema para a sociedade em que vivemos, porque incentivar pessoas que tomam decisões por si mesmas, sem seguir as cartilhas sociais, morais e religiosas é muito perigoso para o sistema, não é um bom negócio. O sistema é feito de regras padronizadas que nos encaixotam e adestram, porém quem é livre e manda em si, segue suas próprias convicções e está fora da “caixa”, precisa ser julgado, apontado, marginalizado para que sirva de exemplo para os outros, com o intuito de demonstrar “o que acontece com quem desobedece regras sociais”.  Constrói-se uma falsa e sensacionalista imagem das pessoas e culturas ‘livres” onde toda uma engenharia é montada em termos de mídia e moral religiosa, com o objetivo de enquadrar as pessoas e mantê-las sob controle.

Essa manipulação velada, subliminar e violenta acontece desde a infância na nossa sociedade. E sendo a cultura cigana fora desse padrão, assim como a cultura dos povos originários, a cultura oriental, a cultura africana, e tantas outras, há uma grande urgência em silenciar tais povos destilando mentiras a seu respeito. Porém, o arremate final nessa estratégia é perpetuar essas inverdades ao longo do tempo. É dessa forma que funciona a coersão das massas. Veja por exemplo, as fake News. Esse trabalho já vem sendo realizado há muito mais tempo do que a existência delas. Da mesma forma ocorre com inúmeras outras formas silenciosas de distração do foco da verdade do universo.

Ademais, as crianças são preparadas para a vida em grupo, portanto, isso significa que elas aprendem conceitos básicos de civilidade e ética, além de comportamentos altruístas e equitários. Todas esses ensinamentos resultam em adultos conscientes, cujos valores e virtudes se baseiam na família e na preservação da cultura cigana, bem como o repasse desses conhecimentos para as próximas gerações.

É engraçado como a sociedade se organiza no que se refere à comportamento não é mesmo? Se a gente pensar numa família que viaja num veleiro por exemplo, essa família é nômade certo? Logo, as crianças não possuem uma educação considerada “normal”, a educação formal. Entretanto, essa família não será mal vista por conta dessa característica. Já a família cigana será. E porque? Qual a diferença entre as duas famílias? Para mim, nenhuma. Mas, para a sociedade em que vivemos há. E essa suposta diferença se baseia com certeza não somente nos conceitos maldosos que estão povoando o inconsciente coletivo a respeito da cultura cigana, mas também a classe social de ambas as famílias, entre outras coisas, como a aparência, que destoa do que é considerado “normal”.

A cultura cigana é organizada em torno dos valores familiares, como eu já mencionei. Entretanto, infelizmente, para a nossa sociedade medíocre, conservadora e moralista só há um conceito certo de família, que é a aquele constituído por um casal heterossexual, que segue as regras morais religiosas e os comportamentos considerados adequados para essa concepção de constituição familiar. Sendo assim, a marginalização da cultura cigana se torna legítima e a dificuldade de interação das crianças ciganas nas escolas convencionais encontra inúmeros desafios, não somente por conta de regras e doutrinas que acarretam em dificuldade de adaptação, mas também por conta dessa distorção étnica violenta sofrida pelo povo cigano, apesar de a matrícula de crianças ciganas ser garantida por lei no Brasil.

Até porque, como a educação da criança cigana é muito livre, essas crianças se deparam com dificuldades no que tange a lidar com prazos e horários fixos. Esse comportamento acaba não sendo bem visto pela sociedade e agrava ainda mais o preconceito em torno desse povo. Não obstante, como já foi dito aqui, essa marginalização se dá com tudo e todos que não se adequam ao status quo. Por exemplo, as pessoas que não tem um trabalho formal, ou seja, das 8 às 18, sofrem retaliações e passam por constrangimentos, ou por comentários absolutamente desnecessários. Quer dizer, nossa sociedade tem uma visão extremamente rasteira caso algo ou alguém esteja “destoando” do pobre conceito social padronizado. Com a cultura cigana não poderia ser diferente.

E sim, nós ciganos nos sentimos ameaçados por tanto tradicionalismo nas escolas convencionais, por conta da nossa cultura ágrafa. Nós não estão acostumados a manusear papéis e livros. Contudo, isso não faz de nós seres inferiores, porém é desta forma que somos vistos: minorias, apenas porque queremos manter nossa tradição oral e nossa cultura íntegras. O massacre é grande, e preferimos preservar nossas crianças de tamanha violência moral e cultural. Não podemos permitir que nossas tradições se percam. Todo esse cuidado é nosso direito, e mais uma vez, afirmo que defendo a necessidade de uma reparação histórica para com o nosso povo, assim como com tantos outros. Nós fazemos parte dos povos que de certa forma se viram obrigados a viver na clandestinidade. No entanto, não fizemos nada de errado.

O que é lindo de ver nas crianças ciganas é o brilho nos olhos, a alegria de viver e o sorriso no rosto por conta de sua alma livre e genuína. A cultura cigana preserva o maior tesouro que deveria ser preservado: o direito de brincar e se desenvolver em plenitude. Disso, a cultura cigana não abre mão porque compreende que quando uma criança é cerceada do seu direito de brincar, está se roubando o futuro de uma sociedade. E esse é o furto mais perigoso que existe, porque uma alma aprisionada resulta nos mais variados desastres sociais, morais e culturais da humanidade acarretando em doenças físicas, emocionais, mentais e espirituais. Por falar nisso, a criança cigana cresce aprendendo a ter contato com a espiritualidade e desenvolvendo dons mediúnicos. Outro aspecto mal visto e que é motivo de deboche. O desrespeito ocidental para com a cultura oriental é devastador e repulsivo.

Enfim, termino essa matéria com o coração repleto de alegria e gratidão por ter a oportunidade de falar abertamente sobre a minha cultura nessa revista, sem ser censurada por medo do que vão pensar dessa revista. Ainda bem que essa revista não tem compromisso com a hipocrisia nem tampouco com o conservadorismo e o autoritarismo, logo, cada colunista tem total liberdade para falar o que quiser, desde que sua fala esteja dentro das premissas da democracia, da liberdade, da quebra de tabus e da ousadia. Esses são os valores dessa revista. Sendo assim, eu boto a boca no trombone mesmo e a “merda no ventilador”, porque, ou a gente desbanca de uma vez por todas a farsa social montada no moralismo religioso covarde e violento, ou, nós, considerados as minorias (inclusive mulheres- então SE LIGA!), vamos continuar sendo massacrados por mais alguns milênios.

Espero que você ainda tenha dentro de si aquela criança com brilho nos olhos e com os seus desejos e sonhos pulsantes e vivos dentro de ti. É isso que não nos deixa morrer em vida.

Um afago,

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Cigana Carmem.

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