O contexto social dos corpos artistas ao longo da história da civilização.
Por Alíne Valencio.
Amiga Deusa,
Mais uma semana se conclui e nosso encontro se mantém. Fico tão feliz e satisfeita de encontrar você aqui mais uma vez. E hoje, vamos seguir com o cronograma que venho apresentando a respeito dos corpos femininos ao longo da história. Estamos abordando, mais precisamente a civilização grega e a sexualidade da mulher. E eu como atriz e mulher, conhecendo perfeitamente bem os desafios e obstáculos com os quais me deparo por causa dessa condição, acredito ser fundamental contextualizar as razões pelas quais até hoje, artistas, em especial artistas mulheres são mal vistas.
Minha querida, se você vem acompanhando essa série de matérias que venho escrevendo há algumas semanas você já sabe exatamente do que se trata. Se você ainda não leu as outras matérias, peço com carinho que volte e leia para que sua compreensão a respeito dessa matéria se amplie. Pois bem. Na Grécia antiga, como já foi comentado, existiam as casas de prostituição legalizadas, e nessas casas haviam os gerentes responsáveis pelo funcionamento do estabelecimento e dentre uma das suas inúmeras atribuições, constava a formação de equipes para trabalhar no local.
Não é difícil conjecturar, portanto, que a configuração dessa equipe era formada por mulheres, artistas. Esses gerentes, que na época eram chamados de proxenetas escolhiam as “mais bem dotadas musicistas e dançarinas” e as alugavam para os banquetes. E fazendo um adendo aqui, fica claro que esse banquete não se refere apenas à comida, você entende isso né minha deusa? As próprias dançarinas e musicistas eram também o banquete, uma vez que eram alugadas. Já pensou nisso amiga deusa? SER ALUGADA para servir os desejos de homens que pagam impostos e isso lhes dá o direito de posse sobre nossos corpos? Você tem dimensão do quanto essa conjuntura social estruturada tanto tempo atrás ainda reverbera de maneira impactante na nossa vida atual? Você consegue vislumbrar o fato de que essa conjuntura estrutural da civilização grega ainda serve como estofo para tudo que acontece na nossa sociedade quando se trata de mulheres? Se nunca pensou, por favor, é urgente que repense seu olhar sobre sua vida, uma vez que sua vida é uma extensão da vida de todas as outras mulheres e vice-versa.
Na Grécia, o governo estabelecia o valor máximo no qual elas deveriam ser alugadas e se mais de uma pessoa disputasse a mesma musicista ela sorteada. Isso mesmo. SORTEADA. É inconcebível que algo desse tipo tenha acontecido né? Pois bem, aconteceu. Amiga deusa, esse estigma perdura até hoje sobre nós artistas mulheres. Contudo, como você pode avaliar, as mulheres artistas eram obrigadas a se prostituir e servir aos homens da maneira que lhes aprouvesse, o que torna tudo na vida de uma mulher até hoje muito mais complexo. Ora, como eu mencionei em outra matéria, se as mulheres eram prostitutas ou não, não interessa. O que importa aqui é como a figura feminina é vista até hoje. Afinal, sendo o corpo feminino dessas profissionais violado dessa forma ao longo da história, nossos corpos também não estão isentos da mesma violência até hoje. Estamos juntas, mesmo que a gente não queira. Se uma mulher é mal vista, as outras também o são, compreenda isso de uma vez por todas.
Sendo a sociedade grega até hoje considerada a mais próspera em todos os sentidos, fica bastante complicado dissociar os conceitos implantados nessa civilização da nossa sociedade hoje. Isso é um fardo muito pesado para nós. A mentalidade e a organização social na Grécia era bastante corrupta e cruel, e dessa forma não eram apenas as mulheres que trabalhavam nas casas de prostituição e as artistas que eram submetidas a esse papel. Em todos os cantos no comércio, e muitas outras pequenas profissões exercidas por mulheres eram “suspeitas”.
Minha querida, eu como artista desde os 13 anos de idade já ouvi de tudo nessa vida, já presenciei os mais absurdos comentários a respeito da minha escolha profissional. E o mais importante a se enfatizar aqui são as situações nas quais estão envoltos tais comentários, olhares e circunstâncias constrangedoras pelas quais nós artistas mulheres somos colocadas ainda hoje, que envolvem a questão da nossa sexualidade, sempre colocada em cheque. Inúmeras são as provações que as mulheres artistas se deparam no seu dia-a-dia na profissão. E claro que todas elas estão fundamentadas em conceitos equivocados, mas muito bem engendrados pelo patriarcado. Porém, esse equívoco é milenar, percebe? É um paradigma que vem, por muito e muito tempo permeando nossos corpos. Claro, se um dia a prostituição foi legalizada, nossos corpos também, se um dia nossos corpos foram propriedade do estado, é claro que ainda paira no inconsciente coletivo masculino a ideia de que nós somos propriedade privada. DELES!
E essa mentalidade histórica tem impactos violentos sobre nossos corpos até hoje. Ainda mais se forem corpos artistas. Amiga, cada mulher que é violentada todo dia, tem por trás um homem com esse tipo de conceito, ainda que seja inconsciente. Isso é um fato inegável, principalmente se uma mulher é mãe. Contudo, tendo ela filhos ou não, uma mulher sempre será exposta quando for desobediente. Eu mesma, como já te falei encontro incontáveis dificuldades em relação a nunca ter sido casada aos 47 anos de idade, não ter filhos, e não ter namorado. E tudo piora por eu ser atriz. Imagine você uma coisa dessa. Para a nossa sociedade mulheres como eu “tem algum problema”. E isso pode parecer baboseira, mas se eu te disser que todo aquele contexto da sociedade grega relacionadas ao corpo da mulher, reflete nesse tipo de olhar sobre mulheres como eu, acredite. Reflete com certeza!
Aliás, não somente para mulheres “como eu”, mas para todas. É mulher? Lamentavelmente, em algum momento da vida, será mal vista. E se depois de tudo que conversamos aqui você ainda acha que não é primordial conhecer o que se passou com a gente ao longo do tempo, sinto muito em te dizer que você nunca vai compreender muitas das coisas que acontecem na sua vida e vai passar por ela sendo refém de conceitos arraigados que recaírão sobre você e você vai pensar que é azarada ou que não tem sorte. Logo, viverá uma ilusão sobre si mesma, sobre o feminino e sobre todo o contexto que nos cerca.
Então, para finalizar nosso bate papo de hoje, gostaria de te convidar a refletir a respeito do que tem feito para transformar a sua realidade e a de outras mulheres. Se quiser, me manda um e-mail ou me chama no direct do instagram no @alinevalenchioatriz tá?
Até semana que vem,
Com amor,
Alíne.