Submissão feminina- Um negócio rentável!
Por Alíne Valencio.
Amiga leitora, esta série de matérias está se estendendo mais do que programei. Porém, é uma abordagem de extrema importância, e a cada dia que eu ia lendo novamente o conto da Branca de Neve, mais eu dilatava minha percepção a respeito de toda a violação retratada no enredo, no que se refere aos corpos femininos. E, dessa forma, eu jamais poderia me isentar de vir aqui e dividir com você, toda a minha repulsa, mas ao mesmo tempo, toda a força que nasce em mim, sempre que um gatilho, uma chave vira na minha cabeça no que concerne `a esses assuntos. Portanto, eu, como mulher, livre e engajada na causa feminina, darei continuidade `a este bate papo, trazendo mais problematizações, com o intuito de que, cada vez mais mulheres despertem e sigam em busca de liberdade pessoal. Vamos lá?
Hoje, sigo discorrendo a respeito de como a figura masculina nos contos de fada (um retrato da realidade) é endeusada e estampada como salvadora das mulheres e de como essa imagem se perpetua nos dias de hoje. Pois bem, o caçador leva Branca de Neve para a floresta, e encantando com sua beleza e candura, desiste de assassiná-la. Veja bem, ele não desiste porque é errado matar pessoas. Ele desiste porque ela é bela e pura. O que está implícito aqui? Que mulheres “feias” podem ser maltratadas. E leia-se por “feias”, as que não preenchem os requisitos impostos pela sociedade machista, patriarcal e baixa. O que ele teria feito se Branca de Neve não fosse bela? Teria a mesma misericórdia? E ele tampouco retorna com a Branca de Neve ao castelo e enfrenta a Rainha. Ele apenas orienta que ela fuja para a floresta, denotando mais uma vez que coragem e honradez não são mesmo suas maiores virtudes, já que segue permitindo que uma adolescente inexperiente se vire sozinha vagando a esmo por uma floresta.
E eles é que são os bonzinhos da história. Não te parece semelhante com a nossa realidade em 2024? O mesmo acontece quando ela encontra a casa dos anões. Branca de Neve desesperada, com medo, depois de enfrentar os terrores da floresta, encontra uma casa para se abrigar. Ela entra, e não procura imediatamente comida, banho, descanso, nada disso. Ao invés de pensar em si mesma e suas necessidades imediatas, o que a incomoda como uma jovem bem prendada, é o estado bagunçado da casa, portanto, sua primeira iniciativa é fazer uma faxina! Ora, minha amiga, esse trecho está muito claro. Qual é a função de uma mulher, ainda que ela seja bela? Servir, servir, servir. O seu cansaço físico, mental, emocional, psicológico, os seus temores, não estão acima da subserviência para qual uma mulher prendada deve atentar. Seus desejos não importam. Sem contar o fato de que está implícito que se ela primasse por seus desejos, vontades, e seu cansaço, ela teria que olhar para dentro de si. E isso não é permitido, ainda mais se for para uma linda mulher, ou melhor, uma irresistível adolescente. Ou seja, priorizar a faxina se configura um véu para não mergulhar para dentro de si e a verdade da sua alma. Parece perdulário, mas não é.
E aqui é importante abrir um parênteses para apontar um combo absolutamente reprovável de estereótipos. Primeiro, a ideia de que é aceitável que uma casa habitada por homens pode ser suja e bagunçada, já que estes não tem constrangimento em serem desleixados com seu ambiente doméstico nem tampouco consigo mesmos. É o famoso “coisa de homem”. Ou seja, a sociedade endossa homens anti- higiênicos pelo simples fato de serem homens e não terem uma mulher para “cuidar deles”. Compreende? Segundo, a percepção de que é absolutamente normal que uma mulher desconhecida se aproprie de uma casa para limpá-la, assim que a encontra, mesmo que essa casa não seja sua, afinal o lar é o território feminino. É como se os afazeres domésticos já fizessem parte da natureza feminina. De certa forma, esse conceito ainda é implícito na nossa sociedade. Por exemplo, quando um casal tem filhos, e alguém, um dos dois, precisa descansar, normalmente ainda
é o homem que vai, e a mulher fica cuidando da criança. O terceiro clichê, é que a mulher primeiro limpa tudo, e só então descansa porque o asseio do ambiente deve ser mais importante que o seu bem-estar pessoal.
É implícito no conto, mas ao que parece Branca de Neve pensa que os anões são crianças. Mas não são. Afinal, trabalham como lenhadores. Não é mesmo? E Embora sejam adultos, no conto, são representados de maneira absolutamente infantilizada. Quer dizer, tudo isso valida a premissa social coletiva de que “homem não cresce nunca”. Como se isso fosse bonito e passível de orgulho. Ou ainda, reforça padrões de comportamentos, que, a nós mulheres, são impostos, como obrigação, entretanto, normalizados quando se trata de homens. Sabe aquele tipo de comentário: “Ah, releva, homem é assim mesmo, crianção”. E a sociedade permite que eles não tenham a mínima preocupação em crescer e assumir responsabilidades, delegando as obrigações das suas vidas, para nós, mulheres.
Os anões são homens que chegam do trabalho, encontram sua casa absolutamente limpa, organizada e uma mulher encantadora dormindo em uma das camas. Ficam encantados com sua beleza e permitem que ela fique se escondendo ali, desde que ela permaneça limpando e, obviamente, cozinhando, ou seja, servindo a eles, homens. E, acrescento, implicitamente, aceitando seus cortejos. E isso não é uma escolha. É uma condição. Mais uma vez, nenhum dos homens está sendo magnânimo ou generoso. Estão descaradamente explorando a mão de obra de uma adolescente fugitiva, apavorada e ameaçada de morte, que não tem para onde ir e se vê obrigada a vender sua força de trabalho doméstico em troca de casa, comida e proteção, cuidando de um lar onde vivem 7 homens adultos e anti- higiênicos. Ela foi “aceita” porque era prendada, porque era bela, recatada e do lar. Só e somente por isso há, da parte dos anões, generosidade e compaixão.
Minha amiga deusa, leitora. Se a gente se debruçar acerca de raciocinar um mínimo que seja a respeito de toda a reflexão que eu propus aqui, é bem provável que a gente desabe em choro, indignação, e revolta não é mesmo? Principalmente por se dar conta de que é esse tipo de informação que a gente recebeu desde criança sobre nós e nossos corpos. E pior, muitas vezes saímos por aí repetindo e perpetuando esse tipo de comportamento, discurso e atitudes. Mas, calma! Não se culpe. Você não tinha consciência de tudo isso porque não se conversava sobre esse tipo de assunto. Contudo, hoje, você tem acesso a essas informação, portanto, traga junto contigo na próxima semana, para esta coluna, outras mulheres, e assim vamos fortalecendo umas às outras e desconstruindo, desconcertando, incomodando o machismo estrutural e reconstruindo nossa história com nossas próprias mãos, nossos corpos, nossas vulnerabilidades, pois elas é que nos tornam fortes.
Aliás, se não fossem nossas fragilidades, nunca teríamos tomado consciência de toda essa nossa conversa e quem sabe ainda estaríamos numa outra realidade, muito mais opressora e cruel? Pense nisso! E agradeça o fato de que, apesar de tudo que nós mulheres vivemos ao longo desses milênios, toda essa experiência das nossas ancestrais mulheres, está servindo de libertação para nós, e também para elas, uma vez que a nossa liberdade, é por, consequência, a delas também. Mas isso também é assunto para outra matéria.
Chegamos ao fim de mais um dia de confabulações femininas, não é mesmo? Porém, sei bem que tais assuntos tem nos causado náuseas. De pensar que a gente vem tolerando, há séculos esse tipo de comportamento. E é justamente por isso que precisamos engolir com farofa tudo que a gente vem debatendo, porque é a partir dessa compreensão, que vamos mudar a história das próximas gerações de mulheres. Mas precisa começar por alguém. E esse “alguém” somos nós!
Te espero na próxima semana. Um beijo.
Alíne Valencio.