O massacre histórico ao corpo feminino nos contos de fadas.
Por Alíne Valencio.
Olá você minha amiga deusa. Hoje, nosso bate papo, talvez te deixe um pouco triste porque a gente vai conversar sobre um massacre: O morticínio velado com nossos corpos, há séculos, mas que é vendido como um sonho, onde os protagonistas, na verdade, são o patriarcado e a misoginia, que apresentam a figura masculina como “o mocinho”. Vamos conversar a respeito do corpo feminino nos contos de fadas. Se, durante essa jornada, você sentir vontade de chorar, berrar e não calar, por favor, o faça.
Infelizmente, nós mulheres, crescemos numa sociedade que nos incentiva a viver um conto de fadas, nos relacionamentos, principalmente. Sempre, obviamente, no papel da princesa. A moça delicada, que ri baixo, com a mão na boca para não chamar a atenção de ninguém, já que recato é sinônimo de obediência. Desafortunadamente, a gente cresce presenciando todo tipo de violência e agressão ao corpo feminino nesses contos, mas de maneira furtiva, já que nos criam num encaixotamento que nos leva a acreditar que, ser aviltada, ultrajada, desqualificada e desmoralizada é o certo. E é claro, que todo esse contexto acontece, ao longo da vida, de forma subliminar, atingindo em cheio nosso inconsciente. E mais, toda essa conjuntura é tão perfeitamente engendrada, que nós, somos responsabilizadas por termos sido castigadas a vida inteira.
Ou seja, a culpa é nossa. Se fomos castigadas é porque merecemos e tínhamos que aprender uma lição. Porém, o pior é que, ainda nos dias de hoje, muitas mulheres tomam tal violência como verdade, e acreditam mesmo que mereceram. Desse modo, quero pedir para você, minha amiga, levar em consideração duas coisas: a primeira, é um paralelo com a realidade social atual, no que concerne ao corpo da mulher, comparando o que serve para a nossa realidade, e segundo, que até os sete anos de idade, nossos padrões mentais, crenças e traumas são alicerçados no nosso inconsciente e determinarão a nossa história de vida, a não ser que, tomemos consciência desse fato e nos coloquemos em busca do rompimento desses padrões.
Então, nas próximas semanas, vamos abordar um conto de fada, destrinchando os trechos do conto e seus pormenores que explicitam o aviltamento do corpo feminino, compreendendo que, geração após geração, nossa ancestralidade, vêm repetindo e contando essas histórias para nossas meninas. O canto escolhido é “Branca de Neve”. Se prepare porque vou começar. Ufa! Coragem Aline, coragem! Vou separar por tópicos, e a cada semana trarei reflexões comparativas.
O Peso do estereótipo da beleza e juventude do corpo feminino retratado nos contos de
fadas.
Branca de Neve é bela, e a beleza é sua principal “qualidade”. Ou seja, ninguém está interessado na sua inteligência, nas suas habilidades, no seu diferencial, no seu talento, nem tampouco na sua capacidade intelectual enquanto ser humano. Nada disso importa. Afinal, ela é bela. A moça perde a mãe, e é criada por uma madrasta com quem não se relaciona bem, mas esses eventos traumáticos são meros detalhes, diante do fato de que ela é bela, e ser formosa parece ser tudo o que realmente importa, pois é seu encanto o elemento catalisador do conflito que conduz o enredo. Ela é branca como a neve. Lábios escarlate como a rosa. Cabelos negros e lisos. Trocando em miúdos, Branca de Neve é o sonho vendido pela sociedade patriarcal até hoje.
O padrão de beleza, no qual, muitas mulheres violentam seus corpos para serem aceitas, aprovadas e validadas. Ela é figura angelical, meiga e delicada, representada pela obediência e bondade, pelo recato e pela moral. Essa é “dama” que a sociedade aceita. Qualquer coisa fora desse formato é devastadoramente rejeitado e punido. Eurocêntrica, claro que ela é magra e jovem. Ser magra é a segunda “qualidade” que atesta que a mulher tem valor social. Contudo, o que na verdade acontece é que, representada dessa forma, a mulher se torna uma moeda de troca. Sim, porque, uma mulher que não tem a beleza que é imposta pela cartilha social, simplesmente não existe. Portanto, se você não teve o privilégio de nascer bela, magra, branca, e de cabelos lisos, “faça qualquer coisa para assim ser”, se quiser fazer parte da sociedade. Essa é a mensagem subliminar.
E se a mulher disser “não”, ela que se prepare, porque vem chumbo, e do bem grosso! E mais. Se contestar, tudo será usado contra ela. Reparem que a madrasta também é uma mulher bonita. Nos contos de fada, até mesmo a menos bela, ainda é belíssima. Não existe espaço para representação de mulheres “comuns”. Então, minha amiga deusa, imagine a gente lá, criancinhas, lendo várias histórias dessas onde SÓ tem mulher magra, jovem e branca. E são essas as mulheres vão “passar de ano”. Aí, a menininha se olha no espelho e percebe que não tem “tais aspectos físicos” e a partir deste momento seu destino está traçado: um incansável histórico de auto punição e violência pessoal, incluindo torturas e auto depreciação.
Minha amiga leitora, aproveito para traçar um parênteses na nossa conversa, e citar o caso de uma menina, cuja história teve repercussão nacional. A garota, de apenas dezesseis anos, colocou silicone e o corpo rejeitou, mas ela não aceitava, e continuou realizando procedimentos, mutilando o próprio corpo em busca de ser a “Branca de Neve”. Arrematando, essa imposição é um massacre a longo prazo. Eu diria a conta gotas, para que o machismo estrutural, continue ocupando o cargo de “amigo das mulheres”, e as mulheres de algozes de si mesmas. Pode não parecer, porém, a história dessa garota, está diretamente relacionado à tudo que estamos abordando aqui. Preste atenção minha deusa.
Essa moça, por conta das imposições sociais que agradam “os olhos e a vontade do machismo estrutural” passou a odiar o fato de que não correspondia a essa cartilha, ou seja, passou a renegar e odiar a si mesma. Não é isso que nos ensinam a fazer desde que nascemos, mas de maneira muito sutil, minimizando nossas dores, nossas dúvidas, nossos medos? A sutileza da moral imposta pela misoginia se vale de subterfúgios onde nos classificam de loucas, desvairadas, e tantos outros adjetivos pejorativos e degradantes quando passamos a questionar tais rótulos. E a maneira como isso se dá, proporciona em nós o sentimento de culpa e realmente chegamos a acreditar que somos as loucas e que tudo é coisa da nossa cabeça. A tal ponto que ruborizamos ao simples pensamento de compartilhar todo esse universo mental ou sentimental com outra mulher. Isso porque a gente, talvez, nem tenha ideia do que ela poderia fazer com o próprio corpo no dia-a-dia dela.
Está claro que essa moça é um reflexo de toda essa explanação que tracei aqui. Mas quantas ainda são? E quanto mais houverem mulheres se violentando dessa forma, mais o patriarcado se consolidada e se fortalece. Você percebe? Dito isso, te pergunto: quanto, ainda, no seu dia-a-dia, mesmo que de maneira inconsciente você tem contribuído para que esse tipo de comportamento se perpetue na sociedade atual? No seu cotidiano e na rotina de outras irmãs? O quanto você tem sido aquela mana que exalta outras manas? E, pera lá! O que exatamente isso significa? Minha amiga deusa. Esse papo é muito sério.
O “ninguém solta a mão de ninguém” ou ainda, o “mexeu com uma, mexeu com todas”, não pode, inexoravelmente se limitar ao raso contexto das mídias sociais. Isso implica em dizer que, não dá para sermos manas umas das outras apenas nas redes sociais, quando vamos lá, indignadas, e postamos frases de empoeiramento e empatia, mas na vida concreta, corriqueira, continuamos perpetuando os mesmos comportamentos que fortalecem e endossam o machismo estrutural e todo tipo de limitações às mulheres.
É primordial agir, de verdade, para mudar a realidade de todas. Tenha em mente a seguinte premissa: enquanto UMA mulher não estiver em dignas condições físicas, emocionais, psíquicas, espirituais e estruturais, nenhuma de nós estará. Acreditar no contrário é viver na ilusão da garantia de que tudo que você acredita que é verdade, realmente o é. Você me entende? É continuar se mantendo na zona de conforto, acreditando piamente que postar algumas frases e vídeos de libertação, resistência e luta pela causa feminina vai resolver o problema. Não vai amiga. Se começar, com afinco, verdade, disciplina e comprometimento transformando a sua vida, você já está mais de meio caminho traçado para a verdadeira transformação da realidade feminina.
Até semana que vem.
Um beijo da Aline.