Um legado ágrafo transmitido de geração para geração.
Por Cigana Carmem.
Olá minha querida leitora,
Eu amo sol, vocês já sabem disso né? Principalmente dos fins de tarde. Hoje, aqui está um belíssimo dia ensolarado, embora ainda não seja verão. Estou ansiosa pela chegada dele. Essa estação do ano me inspira, me inebria e encanta. Assim, me encontro entusiasmada com o assunto de hoje. Quem leu minha coluna na semana passada sabe que estamos iniciando um ciclo de matérias acerca da cultura cigana. A cultura do meu povo, do qual eu tenho muito orgulho. E para dar o ponta pé inicial após a matéria sobre Sara Kali, eu decidi conversar com vocês hoje sobre a língua do povo cigano: O romani. Não, não é romeno nem romanche, pois estas são línguas latinas. Que aliás são deslumbrantes. O romani é um idioma próprio dos Rom e dos Sintos. É uma língua ágrafa, ou seja, não pode ser escrita, então ela é transmitida de forma oral de geração para geração.
O romani não é uma língua oficial em nenhum país, exceto no Kosovo, mas mesmo lá é uma língua que foi desqualificada e rebaixada para “status oficial das minorias”, assim como na Finlândia, na Suécia e Romênia. E não é difícil adivinhar o motivo dessa marginalização do idioma. Ora, o povo cigano é considerado pagão, tão somente porque não segue cartilhas religiosas doutrinárias. E a característica nômade acabou dificultando a “catequização cristã” do nosso povo. E isso foi razão mais que suficiente para que fôssemos vistos como bandoleiros e ladrões. Isso quer dizer que o preconceito religioso foi o responsável pela dispersão da nossa gente, que foi perseguida e morta pelos religiosos e até hoje está espalhada pelo mundo.
O povo cigano, é proveniente da Caxemira, noroeste da Índia. O romani deriva do Sânscrito e teve contato com outras diferentes línguas e por isso se fragmentou em diversos dialetos que são classificados em quatro grandes grupos: Dialetos balcânicos (sudeste); Dialetos centrais; Dialetos do Norte; Dialetos Vlax (Leste). Mas, infelizmente, essa fragmentação territorial e essa diversidade de dialetos fizeram do romani uma língua pouco falada no mundo. E embora alguns vejam vantagens nisso no sentido de que não se normatizou a língua, o que é fundamental salientar é que só houve essa ruptura do idioma e do povo por conta da perseguição religiosa e da morte de centenas de milhares de ciganos pela igreja. Isso quer dizer que a igreja usurpou o direito de manifestação e expressão de um legado dialetal de um povo. Portanto, ela é ladra. A igreja, tanto a católica quanto a evangélica devem à humanidade uma reparação histórica desse legado. Talvez por isso a igreja católica tenha se apropriado de Sara Kali e feito dela uma santa católica e a igreja evangélica tenha se calado. Mas agora é tarde e engana somente os distraídos da verdade.
O mesmo aconteceu com a cultura dos povos originários que foram catequizados a fim de que se instituísse apenas uma língua padrão com o intuito de adestrar e manipular os índios. Contudo, como eu mencionei, o povo cigano não foi colonizado. Graças a Deus! Entretanto, o povo cigano não está mais junto. Cada um está num canto do mundo e muitas vezes sem saber notícias de suas origens. Mesmo assim, ainda existem alguns grupos étnicos agrupados. Inclusive no Brasil. São eles: Os Calon (Cerca de 500 mil), os Rom (Cerca de 300 mil) e Os Sinte ( Poucas famílias). Os dois principais grupos – Calon e Rom- concentram- se no Nordeste, Sudeste e Sul do Brasil. No estado do Paraná encontra-se uma diversidade étnica cigana. Justo no sul do Brasil. A região mais preconceituosa do país. Os Calon foram os primeiros povos ciganos a chegar no Brasil no século XVI quando foram “jogados fora” por Portugal, como tantos outros marginalizados que a Europa não queria por lá porque os consideravam impuros e bandidos. Isto é, todos os povos, pessoas e culturas que a Europa preconceituosa considerava como escória, mandavam para o Brasil, ou seja, fizeram do Brasil sua “lata de Lixo”. E deixo claro que ninguém que veio para cá escorraçado pela Europa era nada disso. Todos eram pessoas que não se encaixavam no padrão de raça ( branca) e na moral (conservadora e religiosa que eles achavam certo). Logo, presume-se também que a Europa é uma escamoteadora do livre arbítrio e do direito de ir e vir das pessoas. E não há maior ladrão nessa vida do que aquele que usurpa a liberdade de expressão. E leia-se liberdade de expressão tudo aquilo que é íntegro e intrínseco com a dignidade e a diversidade humana. Que fique claro isso.
Vejam só que medida social horrorosa que Portugal adotou naquela época: uma política de “higienização Cigana”, e os Rom chegaram mais tarde, no século XIX, e continuaram vindo para cá refugiados da própria terra. A deportação de ciganos portugueses para o Brasil, ao que tudo indica se deu por volta de 1686, e dois documentos portugueses daquele ano informaram que os ciganos deveriam ser deportados para o Maranhão. E essa ordem foi dada porque antes eles iam para as colônias negras, mas o objetivo da Coroa Portuguesa pela capitânia do Maranhão visava dois objetivos claros: 1º – colocar os ciganos bem longe das áreas de mineração e de agricultura, assim como bem afastados dos principais portos da Colônia, que se localizavam no Rio de Janeiro e em Salvador. 2º – esperava-se que os ciganos ajudassem a ocupar extensas áreas dos sertões nordestinos, então ainda ocupadas por índios, pois ainda que “perigosos”, preferia-se os ciganos aos índios. Revoltante não é mesmo? Quer dizer, pretendiam fazer do meu povo escravos, assim como aconteceu com os negros, e dizimar completamente a cultura indígena.
Enfim, uma verdadeira chacina social e cultural. Um massacre histórico. Pode-se dizer portanto que o idioma cigano, o romani foi dizimado também não é? Afinal para sobreviver no país, os ciganos se viram obrigados a trabalhar nas minas de exploração do ouro e portanto, as mulheres ciganas, para quem a família e a criação dos filhos era a coisa mais importante, tiveram que se dedicar completamente ao comércio, relegando a família à própria sorte. E dessa forma muitos dos seus filhos acabaram caindo na marginalidade. E foi assim que equivocadamente o nosso povo foi visto como trapaceiros. Porém, como vocês podem perceber tal alcunha não condiz com a verdade. Até porque, isso acontece ainda hoje em dia se uma mulher precisa deixar seus filhos para trabalhar, é ou não é? E a sociedade vai responsabilizar a mulher, se o filho “for para o mau caminho”. Pois bem! Nada mudou nesse sentido. Muito mais sujeira aconteceu minhas queridas, como o fato de o nosso povo ter sido obrigado a vender escravos negros e por isso, os viajantes que por ali passavam, com o intuito de “aliviar o lado do portugueses”, seus anfitriões, nos empurraram adjetivos ofensivos, como o de trapaceiros. Mas, quem eram os verdadeiros trapaceiros? Hum? Porém, deixemos isto para as aulas de história não é mesmo?
Estou contextualizando dessa forma para salientar o quão o idioma romani foi relegado ao obscurantismo, tanto é que até hoje, como já citei, o romani é uma língua pouquíssimo falada pelo mundo e por conta da necessidade de convivência com o povo brasileiro o romani foi se misturando, se dissipando e principalmente, trouxe, até os tempos atuais uma desconexão das crianças ciganas com o dialeto e a cultura do seu povo. Em primeiro lugar porque não se ensinava e nem se ensina romani nas escolas. E depois porque foi acontecendo um desnivelamento da comunicação entra as gerações ciganas. Ou seja, quando os adultos não querem que os jovens entendam falam em romani. Você percebe como o impacto dessa devastação sócio-cultural impactou o povo cigano?
Esta matéria está chegando ao fim, mas como você já deve estar acostumada eu sempre faço questão de trazer provocações com o objetivo de promover o “despertar dos distraídos”, em outras palavras, cutucar as pessoas da matrix, ou da caverna de Platão a sair e tirar a venda dos olhos para a verdade. E diga-se de passagem, não a minha verdade, porque essa não quer convencer ninguém de nada. Estou me referindo à verdade da lógica, do óbvio. Estou falando da lógica de quem não se contenta com o que lhe dizem e não segue a boiada. Estou me referindo à verdade dos fatos concretos comprovados pela ciência e pela história, não pela religião. Sendo assim, espero que esta matéria tenha sido profunda o suficiente para arrebentar os grilhões das mentiras contadas sobre o meu povo e que isso sirva de para reparar um estrago secular na cultura do povo cigano, desmistificando essa gente tão ordeira, alegre e festiva.
Contudo minha florzinha linda, cada um escolhe o melhor caminho para a sua vida. E se você prefere optar por mesmo assim, seguir distraída, tudo bem. Seu direito, sua vida. E as portas dessa revista estarão sempre abertas para você. Sempre!
Um afago.
Cigana Carmem.