A santa pagã- mulher negra e cigana.
Por Cigana Carmem.
Minha querida leitora,
Hoje me encontro muito feliz porque essa semana marca o começo de uma série de matérias sobre o meu povo. O povo cigano. Ah! É uma cultura linda e eu te convido a embarcar comigo nessa jornada. Será uma viagem encantadora, logo, eu não poderia deixar de iniciar essa matéria citando uma mulher misteriosa e em torno da qual ainda pairam muitos mistérios. Estou me referindo à Sara Kali- A Padroeira dos Ciganos. Eu vou falar do meu povo, é claro, mas não há como não discorrer acerca da marginalidade à qual ela foi relegada pela história. E eu, como uma entidade, tenho plena convicção de que tantos mistérios acerca da sua figura está diretamente relacionado ao preconceito pela sua cor e sua raça, mas principalmente com hipóteses e estudos históricos que comprovam a sua filiação.
Existem inúmeras teorias a seu respeito, pois não há registros sobre sua vida. Eu particularmente acredito piamente na teoria mais lógica – para quem realmente vai a fundo no estudo sobre a vida de Jesus- que ela é filha D’ELE com Maria Madalena. Entretanto, não só porque isso explica muitos mistérios que ninguém sabe esclarecer até hoje, mas também porque ela é negra e esse fato é extremamente significativo para contextualizar sua santificação pela igreja católica e as contradições que essa canonização implica. Para começar, me soa extremamente estranho que ela tenha sido reconhecida como santa por essa instituição religiosa que renegou o povo cigano por considerá-lo pagão, e tenha sido a responsável pela morte de milhares de mulheres pagãs nas fogueiras da inquisição. Dessa forma, por qual razão ela teria sido santificada se ela era padroeira desse povo?
Até porque ela foi considerada santa pela igreja católica, mas foi praticamente esquecida porque ninguém falava mais sobre ela. Um tanto duvidoso não é? É por isso que eu concordo sim que Sara Kali pode ser Nossa Senhora Aparecida. Se você pesquisar na internet, vai encontrar matérias afirmando que não são a mesma santa. E pode ser que não sejam mesmo, porém, considerando o que argumentei nas linhas acima, é muito claro que a igreja católica não teria como explicar o fato de estar reconhecendo como santa uma mulher cigana e pagã, cuja cultura não seguia as doutrinas católicas e por isso esse povo foi marginalizado por milênios. Dessa forma, seria mais cômodo transformá-la em Nossa Senhora Aparecida, alegando que ela seria Maria, mãe de Jesus. E seria fácil eu ser acusada de sacrílega por tudo que estou conversando aqui com você. Porém, prefiro cometer “sacrilégios” a engolir qualquer coisa que dizem para a gente sem realmente compreender o que de fato é verdade ou não.
Não me importo com nenhum adjetivo à mim direcionado, em primeiro lugar por que sou uma entidade e nem vivo há muito tempo no plano físico. Em segundo porque sou uma mulher, e ser mulher já é uma ousadia, em terceiro porque sou uma mulher desobediente e livre. Ou seja, tudo que a sociedade machista odeia até hoje.
Ademais, para mim, existe sim o fato de ela ser negra. E aí você poderia retrucar dizendo: “Mas existem vários santos e santas negras (os) . Não é preconceito”. Você tem razão, existem mesmo diversos santos negros e santas negras na igreja, mas porque de Sara Kali não se sabe quase nada? Aliás, será que não se sabe mesmo, ou não querem que as pessoas saibam? Essa é a pergunta que não quer calar. Inclusive, para quem acredita que ela seja filha de Jesus e Maria Madalena, e for pesquisar, vai encontrar praticamente nenhuma matéria afirmando isso. Eu mesma pesquisei e vi diversas matérias salientando que Jesus e Madalena tiveram dois filhos. E adivinhem, dois filhos HOMENS. Porque ninguém admite a ideia de que Jesus teria uma filha mulher? Mas, sabemos que havia mulher entre seus filhos. Contudo, existem teorias que atestam que quando Maria Madalena foi para a Europa, ela carregava uma criança negra nos braços. E quem seria essa criança?
Se considerarmos, além disso, o fato de que Jesus seria negro, não haveria dúvidas de que sim, Sara Kali é filha de Jesus e Maria Madalena. Isso quer dizer que, se realmente Sara Kali é Nossa Senhora, então houve uma má fé por parte da igreja em esconder que Jesus teria filhos, porque isso colocaria em risco a premissa do celibato dos eclesiastas, e a cartilha doutrinária do pecado sexual. Principalmente uma filha pagã.
Eu finalizo essa nossa conversa, dizendo que Sara Kali também era considerada a Santa da fertilidade. Isso é muito feminino. Totalmente feminino. Até porque, mulheres que tinham o desejo de engravidar eram devotas dela. Mas, mais que isso, a fertilidade tem um significado abundante de força. E força é o que nós mulheres mais temos não é mesmo? Logo, o legado dela para as mulheres ciganas é essa força feminina ancorada na fertilidade. E leia-se fertilidade não somente como a capacidade de gerar filhos, mas também a habilidade gerar a mulher queremos ser. A fertilidade era também a capacidade de realizar milagres e um deles é o milagre da vida. Para a cultura cigana era uma dádiva ter muitos filhos, porque representava sorte e a pior praga era desejar a outra mulher que ela não tivesse filhos.
Vemos em Sara Kali nosso acolhimento por nosso povo ter sido marginalizado ao longo do tempo, e até hoje. Ela também, num certo nível foi, por ser mulher, negra, cigana e pagã e sua santificação não deveria ser uma forma de induzir as pessoas a acreditarem na falsa bondade e moral da igreja, mas sim uma reparação histórica por todas nós, mulheres e nossa infindável luta pelo nosso lugar de direito no mundo.
Então, deixo aqui para você a pergunta: Você tem gerado a mulher que quer ser ou você tem sido a mulher que os disseram que seria melhor você ser?
Um afago,
Cigana Carmem.