Identidade plural no olhar das mulheres documentaristas do cinema brasileiro.
Por Vanessa Cançado.
– Vai Som, Vai Câmera. Ação!
Olá Amoras (es), não sei se vocês sabem, mas os documentários e as cinebiografias são paixões que tenho guardadas em um lugar especial dentro de mim, e são justamente os documentários que trago para reflexão. Em especial, os documentários realizados por mulheres. Há no olhar feminino uma sensibilidade diferente nos detalhes que me alcança em outros lugares.
Vamos falar sobre esse gênero que sempre esteve presente em nosso cinema. Mas proponho a reflexão acerca de uma perspectiva que nos atravessa, do olhar de mulheres, diretoras, roteiristas, inquietas.
O documentário sempre procurou e procura por espaços, e quando se trata de documentaristas, já me vem à cabeça milhares de nomes que me influenciam a cada filme que assisto, e me dá um orgulho enorme fazer parte do mesmo segmento que elas. Das precursoras como Helena Solberg (conversamos sobre ela outro dia), que contribuiu com a desconstrução na narração dos filmes, colocando um pouco de si e muito da pauta feminista. De Lucia Murat, uma documentarista fantástica, que trouxe a ruptura do documentário, para um documentário a partir de experiências pessoais, e que trabalha muito bem a ficção no documentário e vice-versa. Vemos isso muito nítido no seu filme “Que bom te ver viva” (1989), vemos isso ao longo de sua trajetória enquanto cineasta.
Esse filme em especial, me tocou muito na
época. Estava iniciando minha vida artística no
teatro e o cinema já era um amor. Mas é um filme
atemporal, necessário sempre. No filme, Lucia
coloca a perspectiva da ditadura militar em três
olhares: da narradora-atriz, das mulheres torturadas
e das pessoas que conviviam com essas mulheres.
E tem muito dela também, pois a cineasta foi presa
e torturada. Desenha por um olhar absoluto e
sensível nas cicatrizes abertas. Um filme
importante, ainda mais num Brasil dividido, e com o
avanço ultra direitista dos últimos acontecimentos. Outros filmes seus: “Uma Longa Viagem” (2011) e “A Nação que Não Esperou por Deus” (2015).
E muitas outras mulheres vieram para compor o mosaico das documentaristas brasileiras. Temos uma gama de olhares diversos, por muitas pautas urgentes e necessárias: de mulheres cis e trans, das pretas e indígenas e as questões da identidade e que encontram no documentário uma forma de terem a voz e de fato serem ouvidas.
Cito e reverencio mulheres como Adélia Sampaio que foi e é muito importante para o cinema negro feminino, como uma voz que rompeu as barreiras do patriarcado e da hegemonia do branco, abrindo caminho para outras importantes mulheres pretas escreverem suas perspectivas, na luta pelo reconhecimento da diversidade dos corpos e credos num país diverso como o
nosso, e que se nega na frente do espelho o tempo todo.
Também a cineasta Graci Guarani, pertencente à nação Guarani Kaiowá, cineasta e precursora representante do cinema de mulheres indígenas com os filmes “Meu Sangue É Vermelho” (2020), “Nossa Alma não Tem Cor” (2019), “Tempo Circular” (2018) e “Mãos de Barro” (2016).
E não poderia deixar de lado Susanna Lira que tem um olhar todo especial para o feminino, e conta com uma filmografia repleta de filmes viscerais, muito sensíveis, como “Nada Sobre Meu Pai “(2023). Ouso dizer que é o melhor de seus filmes nos últimos tempos. Cito também o “Fernanda Young, Foge-me ao Controle”. Foram filmes que me tocaram a alma. Susanna é uma diretora que admiro por demais. Ainda entre seus filmes, tem
“Torre das Donzelas” (2018), “Legítima Defesa”
(2017), “Damas do Samba” (2015), “Positivas”(2010) e muitos outros. Vale a pena visitar a
filmografia da cineasta.
Outras tantas mulheres soaram suas vozes nos documentários: Adriana Dutra com “Sociedade do Medo” (2022) e “Quanto Tempo o Tempo Tem” (2015); Petra Costa com “Democracia em Vertigem” (2019) – indicado ao
Oscar de 2020 e “Elena” (2012); Paula Sacchetta com seu olhar sobre temas caros a nós mulheres e sobre direitos humanos (“Precisamos Falar de Assédio” de 2016 e “Verdade 12528” sobre a Comissão Nacional da Verdade de 2013), Natara Ney com o poético “Espero Que Esta Te Encontre e Que Estejas Bem” de 2020, “Elza Infinita” de 2021, “Divinas Divas” dirigido por Leandra Leal de 2016 (assina roteiro e montagem). Natara tem um olhar especial porque é também montadora, uma das melhores que temos no Brasil. Finalizo com Eliza Capai que aborda temáticas voltadas a gênero e sociedade, como no filme “Tão Longe É Aqui” de 2013, que faz um recorte da situação feminina a partir de uma viagem pela África; “Espero tua (Re)volta” de 2019, que apresenta um retrato do movimento estudantil e o recente e corajoso filme “Incompatível com a Vida” de 2023, que une sua história com diagnóstico de estar gestando um bebê, incompatível a viver por uma má formação genética, com a de outras mulheres que receberam o mesmo diagnóstico.
Poderia ficar aqui citando as mulheres de cinema, mulheres do documentário e suas trajetórias fílmicas que tem em comum o rompimento de barreiras diárias para chegarem ao cinema, e que se assemelham na pela luta por abrir espaços para suas vozes internas ecoarem nas telas e reverberarem em mim e em vocês. Convido vocês a se permitirem atravessar pelo olhar plural dessas mulheres. A se permitirem a assistir documentários para quem pouco os vê.
Até a próxima cena!
Abraço afetuoso,
Vanessa.
Cine Recorte: Amoras (es), aqui deixo como dica o filme “Orí” (1989), um documentário
ensaio da cineasta Raquel Gerber com colaboração da historiadora Beatriz Nascimento, narrando seu olhar sobre a formação da cultura Afro- Brasileira. O filme teve colaboração
nas imagens por 11 anos até ficar pronto. Uma perspectiva de uma mulher negra, um
material riquíssimo sobre as questões identitárias.